sábado, 22 de setembro de 2007

DIAL À DERIVA - heloisa ausier

Tem dias que a gente acorda com o dial à deriva. Não consegue sintonizar com ninguém. Não estou falando daquele porteiro do prédio ao lado que toca música brega nas manhãs de domingo. Estou falando de não sintonizar com pessoas que a vida inteira estiveram por perto. Estou falando de não sintonizar com o marido ou mulher, com os filhos, ou amigos queridos. Quando estou assim só sintonizo com os bichos. Eles não falam, não emitem opiniões, não nos lembram de nossos defeitos e não interferem no nosso passeio, talvez por isso nunca perca a sintonia com eles.
Hoje acordei com aquela musica do Caetano na cabeça que começa assim... "Rapte-me camaleoa / Adapte-me a uma cama boa..." Na verdade não me importo com um quasar pulsando loa, contanto que seus peitos direitos me olhem assim. Isso foi uma tentativa desesperada de sintonizar, mas meu dial está mesmo à deriva.

domingo, 16 de setembro de 2007

P'ro velho!

Quando eu era criança, nas refeições lá em casa, invariavelmente "brincávamos" de recitar poesias. Meu pai era o mais "fera" e minha irmã não ficava atrás. Essa poesia de Augusto dos Anjos me marcou muito e era uma das prediletas de meu pai. Sabe lá naquela idade, que é mais ou menos a que me encontro agora, quantas decepções ele já tinha sofrido!


Versos Intimos
Augusto dos Anjos

Vês ! Ninguém assitiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável !

Acostuma-te à lama que te espera !
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro
A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga
Escarra nessa boca que te beija

sábado, 15 de setembro de 2007

Esperança


ESPERANÇA - Pablo Neruda

Saúdo-te, esperança, tu que vens de longe,
inundas com teu canto os tristes corações,
tu que dás novas asas aos sonhos mais antigos,
tu que nos enches a alma de brancas ilusões.

Saúdo-te, Esperança.
Tu forjarás os sonhos
naquelas solitárias desenganadas vidas,
carentes do possível de um futuro risonho,
naquelas que inda sangram as recentes feridas.

Ao teu sopro divino fugirão as dores
como tímido bando de ninho despojado,
e uma aurora radiante,
com suas belas cores,
anunciará às almas que o amor é chegado.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Melhor pecados, que tragédias! por heloisa ausier

O som do piano ficava cada vez mais perto, como mais perto ficava o rosto dela, o cheiro doce e a voz sempre tão calada. Os dedos saltitavam e as teclas obedeciam. Desobedecia minhas decisões e mesmo merecendo desconfiança, dizia sim e depois não. Mas não havia segredo que interferisse em meus sonhos, simplesmente não podia fazer promessas e não cumpri-las. Mas ela sabia que a amava... Amava o que poderia ter sido de nós! Naquela época, mas não para sempre... Seus toques no piano tinham a delicadeza de quem toca uma boca. O som saltitante enchia cada canto da sala.
Em quantas tragédias o amor poderia se transformar. Preferia o pecado de desejá-la ali com os toques limpos daqueles dedos treinados e delicados, a me calar. Se ela ao menos tivesse um tempo disponível, eu poderia amá-la. De qualquer jeito... Amá-la como amiga. Eu não me importava se ela não se importasse, mas não havia nada de errado comigo. Eu apenas vivia numa fantasia entre a insanidade e a insegurança. A cada toque sutil, um suspiro. A respiração suspensa a cada olhar. E o vazio do desejo a me sufocar. Não sentia vergonha, não ia me desculpar, só precisava de um coração onde pudesse me encostar e uma alma nova. Ela podia ser um anjo ou uma estrela, podia ser uma gota de chuva ou uma tecla daquele piano numa mistura infantil. Esperanças sendo destruídas a cada nota. Morrer de amor me cansava, mas eu não chorava porque ainda havia a criança em mim. Já tinha vivido para o futuro, mas só o presente podia dar a ela. Cada dia me parecia mais perto e mais longe. Quase não me importavam seus gestos, só o toque nas teclas. Mas ela sabia que a amava... Amava o que poderia ter sido de nós! Naquela época, mas não para sempre... Eu já tinha esperado tanto pelas estrelas, pelo desejo nos seus olhos iluminados. Aquelas teclas que não paravam... Aquelas notas que não calavam... Será que ela gostaria de tentar algo novo? Será que minhas perguntas poderiam machucá-la? Por que ela não tocava seus dedos em mim como se minha boca fosse esse piano? Estava na hora de nos darmos uma chance. Como num sonho molhado ela escorria por entre minhas mãos para o piano e as notas saiam secas, secas demais! Apenas esse dia, ela tinha que esquecer nossos pecados, pois eles não podiam virar tragédias. Eu seria uma espécie de voz sublime e ela minha testemunha, leve e plena de liberdade. Quem sabe ela poderia pensar em mim quando estivesse na cama. Quando a luz estivesse apagada e seu coração batesse rápido e seus dedos tocassem sua pele e não mais o piano, ela poderia pensar em mim. E as teclas como que sem perceber meu calor seguiam a desafiar as notas saltitantes num “jeux des vagues” sem fim. Não era exatamente assim que ela me queria ter, onde ela me queria?
Entre a insanidade e a insegurança eu seguia amando, mas não para sempre. Ela sabia que a amava... Me dava um pouco de atenção maliciosa a cada toque. Não tinha escolhido, mas ia tocar com sinceridade, sem promessas, sem lágrimas. Que linda caricatura de intimidade tínhamos naquela época, mas nas sombras dos seus lençóis não eram para mim seus pensamentos. Seguíamos tendo apenas algumas músicas prediletas em comum e aquele sussurro do piano enchendo cada canto da sala. Há quanto tempo eu imaginava que por trás daquele brilho no olhar havia uma garota apaixonada. Quanta expectativa havia nela por toda essa atenção? Corações jovens batem rápido e a espera de um beijo entre cada toque, entre cada olhar, apenas tirava o pouco do fôlego que ainda me restava. Sim, eu preferia os pecados ao invés das tragédias. E que tragédias podiam nos esperar se ela me olhasse com olhos de desejo? Que pecados podíamos abrir mão sem nos desejarmos?
Os sons a cada canto da sala ficavam mais distantes. Não havia mais sorrisos, nem tesão. Os toques nas teclas eram como corações batendo rápido sem saber para onde ir. Já não sentia seu cheiro nem seu calor. Não seria em mim que ela pensaria quando estivesse na cama. Poderia tê-la amado de qualquer jeito. Poderia tê-la amado como amiga. Apenas amava o que poderia ter sido de nós! O resto eram apenas retalhos e “nonsense”.