quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Uma poesia qualquer a qualquer tempo - heloisa ausier

Não ousaria chamá-las poesias, mas num movimento de me jogar na vida ou pra vida, postá-las seria no mínimo coerente. Se a palavra de ordem é quebrar barreiras ou padrões, abrir o verbo ou os versos no blog, pode ser um caminho melhor do que deixá-los jogados num buraco negro qualquer do meu computador. Então lá vai a primeira, não cronologicamente, mas a que escolhi.

Falta - heloisa ausier

Falta amigo, faltam sonhos.
Idéia que era morreu.
Enterrem as sobras num canto do mundo
Cemitério frio de almas vencidas
De corpos doídos, de rostos chorosos.

Falta um canto um conto de fadas
Um final feliz
A vida é severa com os fracos
Enterrem os fracos num canto da noite
Amanhecer só conseguem os fortes
As almas vividas, os corpos bonitos.
Os rostos alegres

Falta uma chance, um encontro, um encanto.
Faltam solidários às solidões
Amigos às despedidas
Enterrem as sobras da vida
Num canto de mim.
Eu me venço, me machuco,
Correm-me lágrimas de dor.
Na falta de um amor
Enterrem os pedaços de mim.

sábado, 26 de janeiro de 2008

O chapéu mágico - heloisa ausier

Eram duas meninas. Saias plissadas cinza, camisas brancas meias soquete e sapatos pretos. A maior distância entre elas quando estavam sentadas no banco do ônibus escolar, era de menos de um palmo. Suas pernas roçavam levemente nas curvas e isso deixava Clara levemente excitada, enquanto Maria do Carmo fingia que não percebia. A diferença de idade era pequena. Do Carmo estava com 13 anos enquanto Clara tinha apenas 11. Isso nunca tinha sido um empecilho para a amizade, pois as duas tinham sempre muito o que conversar. De vez em quando a mais velha percebia um olhar embevecido da outra, e disfarçava num misto de prazer e constrangimento. E era assim todos os dias de colégio quando as duas eram as últimas a saltar do ônibus.
Chegou junho e os preparativos para a festa junina chegaram junto. Num colégio feminino, as meninas mais altas acabavam se vestindo de menino para dançar quadrilha. Clara com olhar meigo perguntou à Do Carmo se toparia dançar com ela.
_ Tudo bem _ disse a amiga _ mas minha fantasia é de vestido e minha mãe não iria comprar outra pra mim.
_ Não há problema _ retrucou Clara _ tenho calça velha de jeans, posso colocar uns remendos e com uma camisa de xadrez de flanela vai ficar ótimo.
_ Mas você é mais baixa que eu!
_ Você se importa com isso? _ perguntou Clara com olhar pesaroso.
_ Não, não me importo!
Na hora do primeiro ensaio, se encontraram no pátio. Clara não era muito mais baixa que a amiga. Depois que colocasse o chapéu, quase não ia se notar a diferença. Ensaiaram quase todos os dias daquelas duas semanas.
No dia da festa, Clara pintou cavanhaque, costeletas, e usou as calças remendadas e camisa de flanela. Seu chapéu de palha tinha pontas esfiapadas. Seu cabelo curto ajudava na aparência de um perfeito matutinho. Maria do Carmo usava um vestido de chita, trancinhas com laços vermelhos na ponta, as bochechas rosadas de rouge e sardas distribuídas com graça pelo seu rosto. A quadrilha foi um sucesso e Clara estava em êxtase. Nunca tinha ficado tão perto de Maria do Carmo por tanto tempo.
No dia seguinte a vida continuava a mesma. As duas no ônibus conversando animadamente, o ônibus fazendo curvas e levando as pernas delas a se roçarem e um arrepio nas costas de Clara e um friozinho na barriga que a deixava desconcertada. Um dia Clara colocou seu chapéu de palha, em casa na frente do espelho. Seus pensamentos viajaram. “Ela estava com Maria do Carmo no ônibus e quando vinha uma curva e suas pernas encostavam, seus lábios se tocavam também. Falavam juras de amor uma pra outra, e se davam as mãos.” Clara tirou o chapéu. Tentou imaginar novamente a mesma cena, mas não acontecia nada. Não conseguia imaginar. Ela era apenas uma menina, e duas meninas não podiam se beijar.
Todas as noites daí em diante Clara colocava seu chapéu de palha quando se deitava. Com ele na cabeça, conseguia viajar e imaginar as mais diversas cenas de romance entre as duas. Quando tirava o chapéu as cenas desapareciam de sua imaginação como um toque de mágica. Passou a rezar pedindo a Papai do Céu que a transformasse num menino ao acordar, se estivesse usando o chapéu ao cair no sono.
Algum tempo se passou e um dia Clara acordou com uma idéia. Levaria o chapéu pra escola e quando estivesse no ônibus de volta pra casa e as pernas de Maria do Carmo roçassem nas suas, ela pegaria em suas mãos e lhe daria um beijo. Levou o chapéu, mas o manteve escondido. Nem mesmo na hora da curva colocou-o na cabeça. Tinha medo. Um medo horrível de ser rejeitada. Já não sabia mais quem era. Uma menina de chapéu de palha em plena Copacabana dos anos 60? E todos os dias levava o chapéu para o colégio, e todos os dias o trazia de volta decepcionada com a própria covardia.
Um dia estava folheando uma revista da época quando leu numa coluna de fofocas que fulaninha de tal tinha um caso com beltraninha. Não entendeu a princípio. “Duas mulheres? Um caso? Com beijo e tudo?”
No outro dia estava no ônibus ao lado de Maria do Carmo quando numa curva suas mãos se roçaram. Lutando com sua timidez, Clara segurou a mão de sua colega e assim foram as duas até o local onde saltaram. No dia seguinte Maria do Carmo procurou um outro banco pra sentar e nunca mais se sentou ao lado de Clara, mas ela não precisava mais de nenhum chapéu de palha pra fazê-la sonhar.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A cadeira de Gertrude – heloisa ausier

No final do século 19 apareci num pequeno sítio no interior de Minas. Nunca conheci minhas origens, mas isso nunca foi realmente importante pra mim. Me lembro bem da varanda onde ficava. Era uma casa de madeira que rangia aos passos dos moradores. Que som mais tenebroso! À noite ficava escutando os barulhos dos grilos e sapos e da coruja que morou lá numa viga, com os filhotes. O dono da casa, homem de seus quarenta e poucos anos tinha um gato que dormia no meu assento de palha. Um dia ouvi umas visitas falarem... _Que cadeira de balanço rústica _. Como nunca tinha ouvido aquela palavra, fiquei intrigada. “O que seria rústica, algum tipo de cor?”. Mas o que eu estava falando antes? Ah! do gato! O nome do gato era Gertrude. Aí vocês vão falar. _ Mas isso é nome de mulher _. Pois é... o pobre coitado continuou sendo chamado de Gertrude mesmo depois de saberem que era macho. E ele era o cara mais ranzinza desse mundo. Resmungava se alguém o tirasse da cadeira, resmungava querendo comida e resmungava se a cadeira não estivesse na posição certa na varanda. Isso porque ele gostava de assistir ao banho que os patinhos de um lago próximo tomavam todo dia. Acho que ele fantasiava como seria se conseguisse pegar um pato daqueles, mas nunca tentava de tão preguiçoso.
Eu ficava ali, balançando a cada movimento do Gertrude. Não me lembro de mais ninguém sentar em mim, o que me incomodava, já que as outras cadeiras da casa eram usadas pelos humanos. Será que humanos naquela época não sentavam em cadeiras rústicas? O cheiro da minha madeira já quase não se sentia por conta do odor do gato que prevalecia. E assim se passaram alguns anos. Quando Gertrude morreu, outro gato tomou seu lugar e assim continuei sendo usada apenas por felinos.
O século mudou e junto com ele fui parar numa casa de campo que era usada apenas em fins de semana. Foi aí que começou meu suplício. A casa ficava vazia de humanos durante a semana, mas os cachorros tomavam conta da varanda e inevitavelmente umas três vezes por noite eu levava uma mijada em uma de minhas pernas. Às vezes o jato era pequeno se o cão era baixinho, mas se era um grandão, me molhava até o assento. Fui ficando feia e sem vida. É claro que minha madeira era boa, senão não teria durado nem uma semana lá, mas mesmo assim, quem gosta de ser molhada a toda hora e ainda por cima com aquele odor desagradável. Um dia minha dona chegou para passar as férias e reparou que ninguém sentava em mim. Como eu tinha um jeito confortável, ela chegou perto de mim, e ao notar meu cheiro, mandou o empregado me colocar imediatamente no sol. Passei um dos maiores sufocos da minha vida. Ficava no sol o dia inteiro. Comecei a ficar esturricada como um frango no espeto. A noite voltava para a varanda e levava mais um jatos de urina dos cachorros. Todos os dias das férias de verão, passei por isso. Quando minha dona resolveu ir embora, vendo que meu cheiro não saiu, mandou me jogarem num depósito escuro de coisas velhas. Fiquei lá uns tantos anos junto a enxadas, pás e outras ferramentas que raramente viam a luz do dia. Vocês pensam que foi ruim? Que nada... esses foram bons anos. Só havia uma pergunta que eu me fazia constantemente. _ Porque os humanos não sentavam em mim?_
Minha dona ficou muito velha e a filha dela assumiu a casa. Um dia olhando os cacarecos, era assim que chamavam a todos que ficavam no tal depósito, minha nova dona se encantou comigo. Nessa época, depois de estar ali por mais de trinta anos, não havia mais cheiro ruim em mim. Pelo menos era isso que eu pensava. Fui parar numa sala muito interessante, onde pessoas eram atendidas pelo meu dono de hora em hora. Meus companheiros eram uma estante cheia de livros que vivia reclamando de suas prateleiras estarem muito pesadas, uma mesa com abajur, um tapete persa, uma poltrona, um divã e um quadro com uma foto de um velho de barba branca e óculos de graus redondos. Dou uma balançada para quem adivinhar o que meu dono fazia. Claro... era psicanalista! Mas vocês nem imaginam para que eu servia. Só sentavam em mim, aqueles que se recusavam a deitar no divã. Não era infeliz nessa época sabe por que? As pessoas que se deitavam no divã choravam muito deixando o pobrezinho encharcado de lágrimas, enquanto eu... pouquíssimas pessoas sentavam em mim e assim mesmo acabavam no divã. Parece que isso se dava no começo de uma tal de época de transferência. Muitas vezes tive vontade de perguntar ao meu dono o que eu tinha de errado por não merecer que todos sentassem em mim. Mas foi num dia que um cliente dele falou em varanda é que me recordei do começo da minha vida e entrei em depressão. Muitos clientes tinham depressão e achei a palavra perfeita para o que eu sentia. Depois do gato Gertrude, ninguém realmente se importou comigo. Ninguém tinha ciúme de mim, nem me disputava. Foi aí que lembrei que nunca um ser humano tinha mostrado carinho comigo. E a cada sessão que acabava, mais deprimida eu ficava, pois nem aquelas pessoas sentavam em mim mais do que três meses e já iam me trocando pelo divã. Um dia o filho mais novo do meu dono trouxe pra casa um filhote de poodle. O cachorro era endiabrado, e o meu dono vivia recomendando que não deixasse ele entrar no consultório. Nessa época meu dono estava trabalhando menos e ganhando mais, portanto a sala as vezes ficava aberta. Um dia o cachorrinho chegou de mansinho, encostou a pata pequena na minha perna e me balançou. Ele correu assustado mas depois repensou o susto. Ora afinal eu não tinha saído atrás dele para lhe dar palmadas, então resolveu me desafiar e cada dia que encontrava a porta aberta entrava e me balançava. Já estava ficando enjoada, pois nunca mais desde o Gertrude, tinha sido tão balançada. Mas o pior ainda estava por vir. O tal cachorro já com quase um ano e os hormônios a toda, sentiu que a cadelinha pequinês da vizinha estava no cio e deu uma urinada daquelas nas minhas pernas direitas. Molhou meu assento e a almofada que ficava em cima dele. É claro que o poodle levou uma bronca do dono, mas eu acabei parando no sótão do prédio. E lá se passaram 30 anos. O que mais me lembro dessa época era da quantidade de móveis quebrados que eram jogados perto de mim, mas pior era ser roída por ratazanas. O cheiro de mofo também era terrível. Minha depressão nunca tinha sido curada e acabei vivendo ali sem muita noção de quem era meu dono, o que aumentava ainda mais meu complexo de rejeição.
Um dia houve um pequeno incêndio no sótão e depois de apagarem as chamas com um lança espuma interessante, fomos todos retirados para a calçada do prédio. Eu estava de saco cheio da vida e se conseguisse andar teria me jogado na frente de um carro qualquer. Foi aí que um rapaz muito bonito e simpático olhou pra mim. Pensei cá com meus botões ou seria com minhas almofadas rasgadas? Lá vou eu pra casa desse mané que provavelmente tem cachorro e vou ficar novamente urinada e fedida. Agora pelo menos estava cheirando a cinzeiro com espuma. O tal bonitão me colocou na carroceria de um carro de cabine dupla que devia ser estrangeiro, porque tudo nele era escrito em outra língua, e me levou. Fui a princípio para uma espécie de oficina e depois de recuperada e cheirosa fui para um Lounge.
_Vocês sabem o que é um Lounge? Eu não sei também, mas todos falam dele. É um lugar bem legal. Toca musica aos berros, as pessoas falam aos berros, os casais muitas vezes sentam um no colo do outro enroscados no meu assento e fazem ruídos assustadores.
_ Estou feliz por aqui. Pela primeira vez na minha vida sou disputada por humanos. Mas uma coisa está me assustando. Ouvi falar que o bonitão vai trazer uma gata chamada Raimundo pra cá.
_ Ei! vocês não vão perguntar porque uma gata tem nome de Raimundo?_