sábado, 26 de janeiro de 2008

O chapéu mágico - heloisa ausier

Eram duas meninas. Saias plissadas cinza, camisas brancas meias soquete e sapatos pretos. A maior distância entre elas quando estavam sentadas no banco do ônibus escolar, era de menos de um palmo. Suas pernas roçavam levemente nas curvas e isso deixava Clara levemente excitada, enquanto Maria do Carmo fingia que não percebia. A diferença de idade era pequena. Do Carmo estava com 13 anos enquanto Clara tinha apenas 11. Isso nunca tinha sido um empecilho para a amizade, pois as duas tinham sempre muito o que conversar. De vez em quando a mais velha percebia um olhar embevecido da outra, e disfarçava num misto de prazer e constrangimento. E era assim todos os dias de colégio quando as duas eram as últimas a saltar do ônibus.
Chegou junho e os preparativos para a festa junina chegaram junto. Num colégio feminino, as meninas mais altas acabavam se vestindo de menino para dançar quadrilha. Clara com olhar meigo perguntou à Do Carmo se toparia dançar com ela.
_ Tudo bem _ disse a amiga _ mas minha fantasia é de vestido e minha mãe não iria comprar outra pra mim.
_ Não há problema _ retrucou Clara _ tenho calça velha de jeans, posso colocar uns remendos e com uma camisa de xadrez de flanela vai ficar ótimo.
_ Mas você é mais baixa que eu!
_ Você se importa com isso? _ perguntou Clara com olhar pesaroso.
_ Não, não me importo!
Na hora do primeiro ensaio, se encontraram no pátio. Clara não era muito mais baixa que a amiga. Depois que colocasse o chapéu, quase não ia se notar a diferença. Ensaiaram quase todos os dias daquelas duas semanas.
No dia da festa, Clara pintou cavanhaque, costeletas, e usou as calças remendadas e camisa de flanela. Seu chapéu de palha tinha pontas esfiapadas. Seu cabelo curto ajudava na aparência de um perfeito matutinho. Maria do Carmo usava um vestido de chita, trancinhas com laços vermelhos na ponta, as bochechas rosadas de rouge e sardas distribuídas com graça pelo seu rosto. A quadrilha foi um sucesso e Clara estava em êxtase. Nunca tinha ficado tão perto de Maria do Carmo por tanto tempo.
No dia seguinte a vida continuava a mesma. As duas no ônibus conversando animadamente, o ônibus fazendo curvas e levando as pernas delas a se roçarem e um arrepio nas costas de Clara e um friozinho na barriga que a deixava desconcertada. Um dia Clara colocou seu chapéu de palha, em casa na frente do espelho. Seus pensamentos viajaram. “Ela estava com Maria do Carmo no ônibus e quando vinha uma curva e suas pernas encostavam, seus lábios se tocavam também. Falavam juras de amor uma pra outra, e se davam as mãos.” Clara tirou o chapéu. Tentou imaginar novamente a mesma cena, mas não acontecia nada. Não conseguia imaginar. Ela era apenas uma menina, e duas meninas não podiam se beijar.
Todas as noites daí em diante Clara colocava seu chapéu de palha quando se deitava. Com ele na cabeça, conseguia viajar e imaginar as mais diversas cenas de romance entre as duas. Quando tirava o chapéu as cenas desapareciam de sua imaginação como um toque de mágica. Passou a rezar pedindo a Papai do Céu que a transformasse num menino ao acordar, se estivesse usando o chapéu ao cair no sono.
Algum tempo se passou e um dia Clara acordou com uma idéia. Levaria o chapéu pra escola e quando estivesse no ônibus de volta pra casa e as pernas de Maria do Carmo roçassem nas suas, ela pegaria em suas mãos e lhe daria um beijo. Levou o chapéu, mas o manteve escondido. Nem mesmo na hora da curva colocou-o na cabeça. Tinha medo. Um medo horrível de ser rejeitada. Já não sabia mais quem era. Uma menina de chapéu de palha em plena Copacabana dos anos 60? E todos os dias levava o chapéu para o colégio, e todos os dias o trazia de volta decepcionada com a própria covardia.
Um dia estava folheando uma revista da época quando leu numa coluna de fofocas que fulaninha de tal tinha um caso com beltraninha. Não entendeu a princípio. “Duas mulheres? Um caso? Com beijo e tudo?”
No outro dia estava no ônibus ao lado de Maria do Carmo quando numa curva suas mãos se roçaram. Lutando com sua timidez, Clara segurou a mão de sua colega e assim foram as duas até o local onde saltaram. No dia seguinte Maria do Carmo procurou um outro banco pra sentar e nunca mais se sentou ao lado de Clara, mas ela não precisava mais de nenhum chapéu de palha pra fazê-la sonhar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Nem sei o que dizer, para - no mínimo fazer justiça - é delicado como uma renda, misterioso como um véu, suave como uma brisa...
Sensual, muito sensual, todas as meninas já viveram isso e fico pesarosa por quem não admití-lo.
Remete-nos à adolescência, à efervecência dos hormônios, à dualidade humana de querer experimentar novas sensações.
É belo, muito belo. Menina, agora você precisa trabalhar pelo menos um livro de contos (já leu alguma coisa da Cassandra Rios?).
Então ela não consegue articular um conto com essa qualidade. Você é maior. Está na hora de explodir seu talento para além de você mesma.
Beijos, amada.