sábado, 10 de novembro de 2007

A Garota que não ganhou o Ken – heloisa ausier

O letreiro de néon piscava freneticamente como nos últimos meses. Guida pegou outra cerveja. Por mais que tivesse uma boa luz de spot por cima de sua mesa, ficava difícil desenhar bem com o letreiro piscando desse jeito. Poderia desligá-lo, mas muitas pessoas vinham por causa dele. Era uma ótima publicidade, mas pelo amor de Deus... Podia pelo menos consertar essa geringonça. Aquele desenho “tava” mesmo difícil de sair e o pior é que o cliente tinha ligado e avisado que ia chegar por volta de dez da manhã... Que hora pra chegar! Que “nerd” era esse, que acordava tão cedo assim. Só faltava ser filhinho de papai.
Ouviu um miado. Será que o Arnaldo está com fome, pensou consigo mesmo. Anda faminto esse gato! Cadê ele? Ah! Está na janela observando o movimento... E que movimento! O apartamento era um misto de estúdio e moradia e ficava numa rua muito movimentada, em cima de uma lavanderia 24 hs. Pelo menos lavar roupa não era um problema. Para entrar em seu quarto passava-se por seu atelier, onde ficavam, uma bancada, duas cadeiras, um gaveteiro e outros trecos.
Que tal uma pizza, já que ta difícil desenhar com a fome aumentando. Guida tentou fazer as contas de quando tinha comido a última vez e lembrou-se que foi no café da manhã na padaria. Procurou o telefone de uma pizzaria e ligou. Do outro lado uma voz fanhosa pediu seus dados. Fez força para lembrar seu verdadeiro nome. Há muito não usava aquele que tinha sido seu nome de batismo, um “Maria qualquer” desses que tem um monte por aí. Tinha adotado o apelido Guida desde muito nova quando as pessoas se referiam a ela como a neta do Guido. Seu avô era muito conhecido na pequena cidade onde ela nasceu. Era dono do único armazém da cidade. Foi lá que ela aprendeu a dar os primeiros passos, onde treinava caligrafia, e onde olhava os catálogos de brinquedos que seu avô lhe emprestava. Foi assim que se apaixonou pelo Ken.
Foi amor à primeira vista! Nada de bonequinhas com vestidinhos e salto alto. Sim, ela queria o Ken e queria muito. Passou a pedir ao avô sempre o mesmo catálogo. Encabeçando a lista de presentes no aniversário e Natal, vinha sempre o Ken! Quando depois de dois anos sonhando em ter o boneco, um Ken chegou ao armazém de seu avô, Guida achou que finalmente ganharia o boneco. Mas o boneco não era para ela. Era para uma menina de sua turma no colégio. Maldita menina! Duvido que ela soubesse brincar com “ele”. Guida pegou o catálogo e recortou o Ken. Colou o boneco num papelão, levou-o até a linha de trem e colocou-o de tal modo, que quando o trem passasse iria decapitá-lo. Como o trem demorou, tirou o boneco dali e guardou-o sentida. Suas esperanças de ganhar o Ken foram acabando na mesma proporção do dinheiro de seu avô.
Por que o cara do “delivery” estava demorando tanto? O “seu” letreiro piscava três vezes mais rápido que o do outro lado da rua. Guida ouviu vozes altas no corredor. Será que era o vizinho brigando novamente com a amante? Que droga! Com certeza a noite ia ser difícil! Aumentou o som, pegou outra cerveja e sentou-se novamente em sua mesa. Com o nanquim, voltou pacientemente ao desenho. Gostava muito de desenhos celtas, mas esse era difícil. O cara parecia ter conseguido o desenho na internet. Seu contato com ele tinha sido rapidamente por telefone, quando combinaram dele deixar o desenho debaixo de sua porta.
Foi também no armazém do avô que aos treze anos viu pela primeira vez um calendário com mulheres de biquíni, uma tatuagem numa das mulheres chamou-lhe a atenção. Assim que o calendário foi jogado no lixo, Guida recortou a tatuagem e a guardou. Nos quatro anos seguintes juntou milhares de recortes iguais aquele. Antes de completar 18 anos tinha largado a casa dos avós onde morava e foi pra cidade grande. Era lá seu lugar, disso tinha certeza.
O telefone tocou e ela se encaminhou preguiçosamente para atende-lo. Sabia quem era. O namorado tinha se drogado novamente. Não estava mais com saco de aturar neguinho viciado perturbando. O cara era legal. Tocava um violino que era uma maravilha. Tinha conhecido ele num show de punk rock. Onde já se viu um cara que toca violino ir num show de punk rock! Guida gostou disso. Detestava o convencional. Ela mesma de convencional não tinha nada. Seu cabelo mudava de cor conforme as estações do ano. Da última vez tinha pintado de vermelho. Sua franja estava muito curta. Usava um piercing na sobrancelha, vários numa das orelhas e um no umbigo. Tinha decidido há tempos só usar preto, o que a fazia ainda mais magra.
Desligou o telefone com um suspiro, não sabia se de alívio ou de dor. Quando a noite chegasse realmente e o outro lado de sua cama estivesse vazio, iria avaliar a perda, agora era melhor trabalhar. “Cadê a pizza? To morrendo de fome e essa droga de moleque com a pizza que não chega!” Pegou o telefone e discou para a pizzaria novamente. Distraidamente mexeu numa caixa na estante. Lá estavam o boneco de papelão Ken, todas as tatuagens que ela tinha recortado e um colarzinho com um santinho que seu avô tinha lhe dado.
A pizza já estava a caminho, a voz fanhosa anunciou. Foi até a janela. Como o gato conseguia ficar ali e continuar tão calmo. O barulho era intenso e aquelas luzes piscando... Deitou em sua cama para tentar relaxar. Mesmo morando num lugar tão apertado em que a geladeira velha tinha que ficar no quarto e não tinha lugar para cozinhar, gostava de estar em casa. Não se importava de ter pouco espaço já que tinha poucas coisas. Ouviu um barulho de moto mais perto. Devia ser o entregador. Foi para a porta. Em poucos minutos o rapaz tinha subido as escadas. Ele tinha olhos verdes lindos e profundos, os cabelos compridos estavam desgrenhados por causa do capacete e usava uma calça jeans rasgada de tanto uso. Quando entregou a pizza, deu para Guida ver uma tatuagem em seu braço igual a que ela tinha nas costas. O rapaz recebeu o dinheiro dela e perguntou...
_ Você é que é a Guida Tatoo?
_ Sou!
_ Eu sou o cara que você vai tatuar amanhã as dez. – falou o rapaz
_ Como é o teu nome?
_ Meu nome é... não importa... todos me chamam de Ken.

3 comentários:

Ana Lidia Pimentel disse...

Agora, tem Ken pra dar e vender !
A garota ainda quer Ken ?
rsrsrsrs.

Wilma Kos disse...

Enfim li o Ken, e gostei bastante. Tem começo meio e fim...
Melhor aina que O LIVRO

Unknown disse...

Que máximo! Texto ótimo. Tem outros? Não sabia desse talento.